Introdução

Bhagavad Gita


A epopéia Mahâbhârata, de que faz parte o Bhagavad-Gîtâ, foi compilada na forma atual entre os séculos 5 e 1 a.C.


A epopéia se reporta à grande Índia de outrora, unificada política e culturalmente, estendendo-se do Himalaia ao cabo Camorim.


Os kurus formavam um importante kula (clã) dessa época. Quando seu rei Dhritarâshtra, o rei cego, envelheceu, decidiu ceder o trono, não a seu filho Duryôdhana, mas ao primogênito de seu irmão Pându, Yudishtira; pois Duryôdhana, dado ao mal, não era digno de governar. Mas Duryôdhana apoderou-se do trono através de intrigas e traições e tratou de tentar liquidar Yudishtira e seus quatro irmãos.


Krishna, o Deus encarnado, chefe do clã Yâdava, amigo e parente dos kurus, tentou reconciliar os dois partidos, reclamando para os príncipes pândavas apenas cinco cidades. Duryôdhana recusou-se a entregar sem luta a menor parcela de terra. Tornou-se então necessário combater pela justiça e pelo direito. Todos os príncipes da Índia tomaram um ou outro partido. Krishna, imparcial, ofereceu uma escolha aos dois partidos: Duryôdhana escolheu ter aos seu lado todo o exército de Krishna, enquanto que o próprio Krishna, sozinho, passou para o outro campo, não como guerreiro, mas como simples condutor do carro de Arjuna.


Drôna, que instruíra os kurus e os pândavas na arte militar, tomou o partido de Duryôdhana, porque seu velho inimigo Drupada escolhera o outro campo. Bhîshma, tio-avô dos príncipes kuravas e pândavas, o homem que sempre vivera em castidade e era o homem mais forte de seu tempo, era o chefe do partido que tentara reconciliar kurus e pândavas. Quando fracassaram as tentativas pacíficas e a guerra tornou-se inevitável, ele decidiu, depois de examinar escrupulosamente seus deveres e sua obrigação, tomar o partido de Duryôdhana. Sabia que este estava errado e se a batalha envolvesse apenas os dois ramos da mesma família, teria permanecido neutro; mas quando viu que todos os antigos inimigos dos kurus estavam se aliando aos pândavas, decidiu lutar apenas dez dias ao lado de Duryôdhana e depois se retirar para uma morte voluntária (obtida por meios não violentos).


Do ponto de vista estritamente militar, o exército de Duryôdhana era claramente superior ao de seu adversário. Mas esta superioridade era compensada pela presença de Krishna no campo oposto.


Sanjaya, o condutor do carro do velho rei Dhritarâshtra, relata-lhe o que aconteceu no campo de Kurukshetra, onde os dois exércitos se reuniram para uma luta sem precedentes na história da antiga Índia.


É então que começa o Bhagavad-Gîtâ, o Canto Divino, assim chamado por conter as palavras de Krishna, a divindade encarnada, e por ensinar o homem a elevar-se acima da consciência humana, até uma consciência divina superior, realizando desta forma na Terra o reinado dos céus.

Capítulo 1


IGNORÂNCIA E SOFRIMENTO DE ARJUNA

Fala Krishna:
25. Eis aí reunidos os parentes dos Kurus!


Fala Sanjaya (o narrador):

26. Então viu Arjuna, nos dois exércitos, homens ligados a ele pelos vínculos do sangue: pais, avós, mestres, primos, filhos, netos, sogros, colegas e outros amigos - todos armados em guerra contra ele:


27. Com o coração dilacerado de dor e profundamente condoído, assim falou ele:


Fala Arjuna:

28. Ó Krishna! Ao reconhecer como meus parentes todos esses homens, que devo matar, sinto os meus membros paralisados, a língua ressequida no paladar, o coração a tremer e os cabelos eriçados na cabeça... Falha a força do meu braço... Cai-me por terra o arco que tendera...


29. Mal me tenho em pé... Ardem-me em febre os membros... Confusos estão os meus pensamentos... A própria vida parece fugir de mim...


30. Nada enxergo diante de mim senão dores e ais... Que bem resultaria daí, ó Keshava (um dos muitos apelidos de Krishna), se eu trucidasse os meus parentes?


31. Não, Krishna, não quero vencer. Não quero, deste modo, conquistar soberania e glória, riqueza e prazer.


32. Ó Govinda, como poderia semelhante vitória dar-me satisfação? Como me compensariam esses espólios da perda que sofreria? E que gozo teria ainda a minha vida, se a possuísse pelo preço do sangue dos únicos que me são caros, e sem os quais a vida me seria sem valor?


33. Avós, pais e filhos, aqui os vejo. Mestres, amigos, cunhados, parentes - não, não os quero matar, ó Senhor dos mundos! Nem que eles anseiem por derramar o meu sangue.


34. Não os matarei, Madhusudana, ainda que com isto lograsse domínios sobre os três mundos - menos ainda me seduz a posse da terra.


35. Dores somente me caberiam por semelhante mortandade.


36. Mesmo que os filhos dos Dhritarashtras sejam pecadores, sobre nossa cabeça recairia a culpa, se os matássemos. Não, não é lícito matá-los. E como poderíamos ser felizes, sem os nossos parentes, ó Madhava?


37. E se eles, obsedados de cobiça e cólera, não vêem pecado na rebeldia e no sangue derramado,


38. Como poderíamos nós fazer o mesmo, ó Santo? Nós que vemos pecado em matarmos nossos parentes?


39. Quando uma tribo se corrompe, perece a piedade, e com ela perece o povo - a impiedade é contagiosa!


40. Corrompe a mulher, mesclando o puro com o impuro, e abre-se o inferno ao destruído e ao destruidor.


41. Até as divindades, privadas dos sacrifícios, tombam dos céus.


42. E essa mescla de puros com impuros produz a ruína das famílias.


43. E o destino do destruidor é o inferno, consoante as escrituras.


44. Ai, que desgraça seria se trucidássemos nossos parentes, levados pela ambição do poder!


45. Bem melhor seria se nos rendêssemos aos inimigos armados e nos deixássemos matar na luta, sem armas nem defesa.




Assim dizendo, em pleno campo de batalha, deixou-se Arjuna tombar no assento da carruagem, e das mãos lhe caíram arco e flechas, porque trazia o coração repleto de amargura.